Acompanhei a votação da pronúncia do impeachment contra Dilma até o
final da sessão, às 2:30 da madrugada de 10/08/2016. Reproduzo o artigo do
jornalista Paulo Moreira Leite que reproduz com fidedignidade o teor e a natureza
da trama golpista.
Considerando
a já baixa credibilidade de nossos parlamentares, pode-se lamentar a maratona
política realizada no Senado, que chegou as 2 e meia da madrugada desta
quarta-feira. Para quem pode seguir ao menos uma parte das discussões, como fez
este humilde blogueiro, foi uma noite didática, para se assistir a um
espetáculo de cartas marcadas, um teatro ensaiado com antecedência para se
evitar debates reais e avançar o rolo compressor de uma maioria de momento,
ocupada em revogar direitos e conquistas da última década e meia -- operação
que passa pelo afastamento definitivo de Dilma Rousseff e pela cada vez mais
complicada tentativa de dar alguma estabilidade ao governo Michel Temer.
A
longa jornada madrugada adentro foi uma celebração macabra contra a soberania
do voto popular. Três dias depois das revelações contidas na delação premiada
de Marcelo Odebrecht, que apontaram para as tratativas do próprio Temer para
receber RS 10 milhões em dinheiro vivo e também de RS 23 milhões enviados para
José Serra em contas no exterior, os aliados do golpe de março-abril
conseguiram a proeza -- realmente espantosa -- de seguir a pauta dos trabalhos
como se nada demais tivesse acontecido.
Mesmo
assim, não foi possível impedir momentos de indignação e denúncias que serviram
para registrar até o aspecto ridículo de acusações apresentadas para incriminar
a presidente. O placar final, que aprovou o parecer de Antonio Anastazia
(PDSD-MB) por 59 votos a 21, mostra que a estrada para Dilma retornar ao
Planalto segue muito difícil, mas não está resolvida. O Planalto atuou pesado
para garantir uma votação favorável, numa marcação individual para impedir
manifestações dissidentes, que a imprensa amiga fingiu não acompanhar. Foi
neste ambiente que a presidente tornou-se ré.
Ainda
assim, o debate cumpriu a utilidade inegável de sublinhar incoerências que
alimentam o pedido de afastamento definitivo de Dilma. Para revelar o absurdo
da argumentação dos adversários da presidente eleita, o senador Randolfe
Rodrigues (Rede-AP) foi atrás das despesas previstas por um decreto assinado
para promover realocamento de verbas no interior do Ministério da Justiça. A
decisão envolveu recursos destinados a assegurar compra de equipamentos e
despesas de operações da Polícia Federal, compensando cortes promovidos pelo
contingenciamento de gastos realizado depois que uma queda de receitas
passou a ameaçar a previsão final de contas. "Esse decreto foi uma forma
de garantir a continuidade da Lava Jato," explicou Randolfe, sublinhando a
ironia da situação. Os senadores alinhados com Temer, que enchem a boca para
fazer denúncias de corrupção, pretendem punir Dilma por ter resolvido,
mesmo em hora de extrema dificuldade financeira, assinar um decreto que
sustentava uma operação que tem cortado sua própria carne. O problema é que o
governo fez isso dentro da lei, sem mexer no gasto total do governo, apenas com
mudanças internas. Num debate sério, seria o caso de aplaudir a mudança
-- e não de condenar, ainda mais num país onde a "falta de
verbas" sempre foi a desculpa favorita para autoridades que querem
esconder a má vontade contra gastos que não fazem parte de suas prioridades
políticas.
Em
outra intervenção instrutiva, Gleisi Hoffman (PT-PR), apontou outro decreto,
que contém uma única despesa polêmica, de R$ 360 000 reais, quantia modestíssima
num déficit reconhecido de R$ 116 bilhões. O questionamento, aqui, não resiste
no volume dos recursos, mas em sua origem dos recursos. O decreto tratava de um
excesso de arrecadação da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São
Francisco, destinando os recursos para a Centrais Elétricas de Minas Gerais, a
Cemig, disse Gleisi, encarando Antonio Anastasia, que até 2014 respondia pelo
governo de Minas Gerais, principal acionista da empresa. A maioria das pessoas
não sabe, mas, sem dar um destino aos recursos que recebe a mais, a
administração pública não tem meios legais para gastá-los.
Apenas
a certeza de que se trata de um debate que é pura formalidade explica a
natureza -- no melhor estilo seria cômica se não fosse trágica -- das denúncias
que conseguiram sobreviver ao escrutínio dos últimos meses, realizado por quem
trabalha com dados reais e não construções ideológicas. A denúncia do Plano
Safra do Banco do Brasil, um dos quatro motivos atuais para o afastamento, que
chegou a ser inicialmente apontado como o caso mais grave, simplesmente não
fica em pé.
Para
começar, não é possível apontar a responsabilidade da presidente pelo suporte a
lavoura brasileira, tarefa que cabe ao ministros da área econômica e a
dirigentes da própria instituição, como foi reconhecido pelo Ministério Público
Federal. Em segundo lugar, não é possível confundir o suporte a agricultura com
operações de crédito aos agricultores. São ações diferentes, que envolvem
quantias muito diferentes, como esclareceu Katia Abreu (PMDB-MT), ontem. A
senadora apresentou números que justificam o uso do crédito agrícola ao país:
aumento de 10% da área plantada e 17% na produção; elevação para 60 000 no
número de máquinas agrícolas, crescimento várias vezes maior do que nos anos
anteriores.
Um
ponto marcante das discussões coube a Cristovam Buarque (PPS-DF). Uma semana
depois de anunciar que não tinha medo de ser chamado de golpista,
Cristovam marcou um clássico gol de mão, particularmente revelador para o
argumento real empregado pela bancada dos aliados do golpe de abril-maio. O
Brasil vive sob um regime político "híbrido", disse Cristovam, numa
tentativa de justificar o método empregado para se afastar Dilma pela visão de
que nosso sistema de governo não é o presidencialismo, como acreditaram os 67
milhões de brasileiros que votaram no plebiscito de 1993, mas uma variante do
parlamentarismo, vencido por uma maioria indiscutível, de 55% contra 24% dos
votos. (Trinta anos antes, um primeiro plebiscito já havia confirmado a opção
presidencialista dos brasileiros, por uma margem ainda maior).
Avançando
no raciocínio, Cristovam chegou a falar em "voto de desconfiança"
contra a presidente, recurso que seria inteiramente legítimo se o sistema
assegurasse aos parlamentares a palavra final na definição do chefe de governo.
Neste caso, são avaliações de natureza política e ideológica que podem
justificar uma mudança no comando do Estado. O "voto de
desconfiança" não faz sentido num sistema onde o cidadão escolhe o
presidente em urna, pelo voto direto, sem a mediação de uma elite de políticos.
O gol de mão reside aí. O ludibriado está sendo o eleitor, chamado a fazer o
mesmo papel de bobo cumprido pelos torcedores de Argentina e Peru na Copa de
1986, quando Diego Maradona fez um gol decisivo atribuído a "Mano de
Diós."
O
que está em curso, no Brasil de 2016, é a aplicação de um método socialmente
elitista de disputa política, muito bem demonstrado pelo historiador Luiz
Felipe Alencastro numa série de estudos sobre a ideia-fixa parlamentarista do
conservadorismo verde-amarelo. O impeachment, não contém um fato jurídico, como
acontecia com as denúncias de crime de responsabilidade contra Fernando Collor,
em 1992. Mas é uma decorrência oportunista da relação de forças estabelecida
pelas eleições de 2014, quando Dilma obteve maioria de votos e, paralelamente,
a oposição a seu governo fez maioria no Congresso de Eduardo Cunha. Não foram
os erros -- inúmeros e graves -- do governo Dilma que levaram ao impeachment,
mas a oportunidade política aberta a uma oposição sem escrúpulos democráticos,
a ponto de acusar primeiro e procurar uma denúncia depois. Essa realidade
justifica a postura de Jorge Vianna (PT-AC) ontem, ao encerrar um
encaminhamento com um apelo: "preserve o voto do povo," disse
aos adversários.
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