Osmar Pires Martins Júnior
O editor-geral do Diário da Manhã me ligou no último domingo. Ele estava na sua casa e eu na minha: Disse ele: “Estão querendo construir usina no Araguaia. De novo. É um absurdo. Escreve um artigo sobre isso. O Araguaia e o Encantado agradecem.” Recebido o desafio, pus-me a pensar no assunto. Não faltam argumentos, fatos e justificativas para abordá-lo. Sempre na ótica da defesa de um recurso que é Patrimônio da Humanidade. Um tesouro dos goianos, muito embora, às vezes lembrado apenas nas altas temporadas. Nessas ocasiões, não faltam supostas autoridades ou pseudo-ambientalistas defensores de uma segunda natureza, expressa no ato da festiva descida do rio, embarcados confortavelmente em caravanas de fulgurante fiscalização, vistoriando leitos e margens, regadas a uísques e outros líquidos preciosos.
Mas o assunto, árido como quase tudo que se relaciona ao desenvolvimento sustentável, requer certo conteúdo de abordagem, contextualização histórica e conjuntural. Sem a pretensão da verdade, mas buscando referência na realidade, tentarei desenvolver o tema. Dada a exigüidade de tempo e de espaço, a questão sobre a polêmica de empreendimentos hidroelétricos no Araguaia será feita em três tópicos: o licenciamento de usinas hidroelétricas em Goiás; o ineditismo e a importância de um novo modelo de licenciamento, adotado pioneiramente no nosso estado; e a importância de um rio goiano que pertence à humanidade.
O licenciamento de usinas hidrelétricas em Goiás
O estado de Goiás possui importância estratégica para o país. Sob vários aspectos: hidroviário, rodoviário, ferroviário, agropecuário, energético, na geração de uma matriz limpa e renovável, com o biodiesel e a co-geração. E, sobretudo, ambiental, por constituir o cerrado goiano o coração de um ecótono continental, uma miríade de ecossistemas de transição entre os biomas nacionais. Daí sua importância na proteção da biodiversidade e na preservação das reservas hídricas superficiais e subterrâneas.
Do ponto de vista da geração e distribuição da energia elétrica, cito a paralisação da Usina de Cachoeira Dourada, durante 10 dias, em setembro de 2003. Foi o único embargo de uma usina na história do país, repercutindo no noticiário nacional e internacional. O New York Times cobrou da empresa multinacional, detentora da concessão, uma explicação para a falta da licença ambiental de um empreendimento que operava há meio século sem um requisito básico para uma empresa que, na Europa, possui certificado de selo verde (ISO 14.001).
A pressão do Sistema Energético Nacional foi imediata e veio do Poder Central. A reprimenda foi feita diretamente ao Chefe do Executivo Estadual: “Goiás não concede licença para nova geração de energia há quase uma década, e agora embarga uma usina que está funcionando?”. Em virtude do sistema interligado de geração e distribuição, em face da posição estratégica de Cachoeira Dourada, o seu embargo poderia causar um colapso no abastecimento nacional.
De fato, a reclamação procede, mas não se fundamenta. Por fatores de uma conjuntura própria àquele período, ocorreu o fenômeno da judicialização do licenciamento ambiental. A atuação de afoitos promotores de justiça transferiu uma atribuição típica do órgão competente do poder executivo – a concessão de licença ambiental de empreendimentos não só hidroelétricos – para a alçada do poder judiciário, a ser tomada por um Juiz de Direito. Na área de energia, não só a judicialização contribuiu para o colapso. A falta de investimento no setor resultou no apagão, de triste lembrança para todos.
A importância estratégica de Goiás no setor energético nacional pode ser demonstrada no fato e argumento que desenvolvo a seguir. No dia 19 de outubro de 2004 a então ministra das Minas e Energia e atual presidente eleita do país, Dilma Rousseff, veio a Goiânia para cumprimentar o Governador Marconi Perillo e a Procuradora-Geral de Justiça, Laura Bueno, pela iniciativa de criação e adoção de um novo instrumento de licenciamento ambiental de empreendimentos hidroelétricos. A ministra afirmou que “a elaboração de Estudos Integrados de Bacia Hidrográfica – EIBH representou uma evolução brasileira na área de energia e meio ambiente”.
O signatário destas linhas exercia titularidade do órgão de controle do meio ambiente em Goiás, esteve presente à audiência da ministra com o governador e com a representante máxima da Promotoria Pública, na condição de autor da iniciativa da proposta, de discussão e execução de um novo marco regulatório para o licenciamento ambiental de empreendimentos hidrelétricos no estado, culminando no termo de referência do EIBH assinado pelo órgão do executivo com o Ministério Público de Goiás - MPE.
Exemplo para o País
Na matéria “Exemplo para o País”, publicada no dia 20/10/04 pelo Diário da Manhã, encontra-se a afirmação da futura Presidente do Brasil: “No país e em Goiás, particularmente, havia um conjunto de processos de licenciamento embargados na Justiça em que se levantava a necessidade de haver um estudo mais amplo da bacia hidrográfica como condição prévia para se dar o licenciamento. Nós consideramos fundamental a incorporação dos estudos integrados de bacia no planejamento energético, simultaneamente aos esforços para a geração de uma quantidade de energia disponível para o desenvolvimento do País. Daí, a importância do EIBH, um projeto pioneiro no país, realizado pela Agência Ambiental, que visa compatibilizar a geração de energia com o impacto da construção das usinas no meio ambiente, mapeando a quantidade e a localidade de instalação das usinas”.
O modelo antigo, então existente, era baseado no seguinte procedimento: o Ministério de Minas e Energia (MME) realizava o inventário hidroelétrico, baseado no estudo da capacidade de geração de energia elétrica dos diversos mananciais hídricos brasileiros. Comprovada a viabilidade, consistente na capacidade de geração superar os custos de implantação e manutenção, realizava-se a outorga, de acordo com a capacidade específica de cada trecho do manancial. Um mesmo manancial poderia receber mais de uma outorga, e uma bacia hidrográfica, dezenas de outorgas, correspondentes aos trechos com aproveitamentos hidroelétricos. Estas outorgas eram levadas a leilão, onde os empresários do setor poderiam fazer suas ofertas e adquirir o direito de exploração econômico do recurso hídrico para gerar energia, um bem econômico extremamente valioso e fundamental ao desenvolvimento do país.
Com base no modelo antigo, as bacias não tinham limites para a exploração econômica. O número de outorgadas era o número de aproveitamentos hidroelétricos. A bacia hidrográfica da Região Sudoeste do estado de Goiás tinha mais de oitenta (80) outorgas. Se todos os empresários detentores do direito de exploração do recurso hídrico decidissem implantar o seu respectivo projeto, bastaria apresentá-lo ao órgão licenciador, por meio dos Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental – EIA/RIMA. Na hipótese da aprovação de todos eles, muitos mananciais de água corrente na Região Sudoeste deixariam de existir, cedendo lugar para uma sequência de lagos, ligados por canais de vazão controlada, alterando o ecossistema de água corrente para água parada, temperatura menor, ictiofauna diversa e empobrecida (30% das espécies de peixes desaparecem com a mudança do sistema hidrológico lêntico para lótico), matas ciliares e de galeria naturais extintas, desaparecimento da fauna. E principalmente, populações ribeirinhas impactadas, positiva e negativamente, por transformações sociais, econômicas e culturais.
Pioneirismo goiano
O estado de Goiás foi pioneiro na adoção do novo modelo de Estudo Integrado de Bacia Hidrográfica – EIBH e posteriormente adotado pelo IBAMA e por outros órgãos estaduais de controle de meio ambiente passou a ser um instrumento mais abrangente de licenciamento de planos de desenvolvimento no setor energia. Este modelo, aplicado a empreendimentos hidroelétricos, ocorre antes da avaliação dos projetos específicos, por meio dos Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental – EIA/RIMA. O EIBH se adéqua a uma nova realidade mundial, que clama por uma matriz energética mais limpa.
São várias as vantagens do novo modelo em relação ao anterior. O primeiro, mais simples de entender, ocorre no caráter do licenciamento. No modelo anterior, o empresário, com a outorga na mão, passa a ter o direito de explorar o recurso água para gerar energia. Resta ao empresário, para efetivar seu “direito adquirido”, elaborar o projeto e submetê-lo ao órgão licenciador para obter a licença. Não é simples, mas basta seguir as normas do EIA/RIMA – estudo por equipe interdisciplinar dos componentes social, biológico e físico implicados nas fases de implantação e funcionamento do empreendimento, com as devidas compensações e mitigações.
Não raro, empreendedores recorriam à Justiça para cobrir esse direito quando algum órgão licenciador mais prevenido entendia em não aprovar o projeto. Ou no que se revela como o reverso da moeda, o órgão tutor da sociedade – Ministério Público – não raro entendia que a licença concedida pelo órgão licenciador não estava de acordo com as normas pertinentes, recorria ao Judiciário com o objetivo de cassar o suposto direito do empreendedor de efetivar sua outorga e iniciar a exploração do recurso para o qual o empresário legalmente se habilitou.
O EIA/RIMA de projeto de empreendimento no setor hidroelétrico, baseado na expedição da outorga antes da licença ambiental prévia, ao subestimar os fatores ambientais envolvidos e sobrevalorizar apenas os fatores econômicos, desencadeia uma enorme pressão política sobre os órgãos de licenciamento. Por outro lado, com o advento do Ministério Público, ocorreu o fenômeno da judicialização do licenciamento. Em síntese: o órgão licenciador ficou exposto às múltiplas pressões: dos empreendedores – os empresários – e dos representantes da instituição tutora da legislação do meio ambiente – os promotores e procuradores de Justiça do Ministério Público.
Com o EIBH, das 80 outorgas, apenas 5 foram licenciadas
No modelo EIBH, o aproveitamento hidroelétrico específico só receberá a outorga caso tenha a LP – licença ambiental prévia. A LP é condição prévia para a concessão da outorga e para a realização do leilão. Só a partir daí que o empresário poderá apresentar seu lance e adquirir o direito de exploração econômica de um bem ambiental, o recurso água. E esse novo modelo só é possível porque o EIBH não analisa projetos isoladamente. Ele realiza o estudo amplo de avaliação social, econômica e ambiental da bacia hidrográfica para a implantação de empreendimentos de aproveitamento hidroelétrico, no qual o fator econômico é apenas um dos vários analisados.
No caso da bacia hidrográfica da Região Sudoeste de Goiás, onde havia 80 outorgas concedidas pelo Governo Federal, foi necessário estabelecer uma fase de transição para os projetos de usinas já existentes ou que estejam já aprovados, face à demanda do país que havia passado por recente apagão no setor e que necessitava atender uma demanda de energia. A então ministra Dilma Rousseff reconheceu a correção da iniciativa goiana, que concedeu uma licença prévia paralelamente ao período de licenciamento ambiental, desde que os estudos integrados por bacia hidrográfica fossem incorporados.
O termo de referência, elaborado pela Agência Ambiental para aplicação na Região Sudoeste de Goiás, foi considerado como alternativa viável à implementação do novo modelo. Das 80 outorgas, houve o licenciamento de cinco projetos de usinas hidrelétricas que juntas tinham a capacidade de geração de energia de 270 MW. E isso foi um passo importante, considerando-se que nenhuma usina havia sido inaugurada no estado nos últimos 8 anos.
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